CDM – mitos e verdades. Por Sérgio Martins.

CDM – mitos e verdades. Por Sérgio Martins.

Tomada de Decisão Colaborativa, em Transporte Aéreo

Há cerca de dez anos, o assunto vem consolidando-se como trend topic, nas áreas de gestão de tráfego aéreo e operação aeroportuária. E como é comum a todo trend topic, fala-se bem mais do que se efetivamente compreende.

Um dos principais obstáculos à perfeita compreensão do que representa a introdução do conceito de Tomada de Decisão Colaborativa (CDM), no transporte aéreo, é fruto de uma separação histórica entre os universos aeronáutico e aeroportuário.

Tradicionalmente, grandes competências foram desenvolvidas, no âmbito aeronáutico (serviços de tráfego aéreo) e no âmbito aeroportuário (processos relacionados a embarque e desembarque de passageiros e cargas).  A introdução do CDM no transporte aéreo, nasceu justamente da necessidade de unir estes dois universos, de forma a otimizar o transporte aéreo como um todo, buscando uma operação eficiente de ponta a ponta – ou seja de gate to gate.

Retrocedamos alguns anos no tempo, quando dos primeiros eventos de congestionamento do espaço aéreo, à medida que crescia o tráfego. Em algum momento no tempo – e este momento não foi o mesmo nas diferentes regiões, tornou-se claro que muitos voos decolavam rumo a congestionamentos, esperas e desvios em rota, o que tornava as operações mais longas, mais caras e ecologicamente mais nocivas – consumo desnecessário de combustível e aumento da emissão de CO2.

Os slots estratégicos, definidos por temporada, já não resistiam à operação real, onde eventos meteorológicos, atrasos, falhas mecânicas, etc., produziam inevitáveis congestionamentos. A única alternativa possível era assegurar que cada voo só tivesse início, quando a disponibilidade do espaço aéreo permitisse uma operação ininterrupta – gate to gate. E assim foi feito, com o advento do Ground Delay Program que, como o nome induz, assegura que as esperas necessárias, para equilibrar capacidade e demanda, ocorram com as aeronaves em terra, e turbinas desligadas.

Aí reside o primeiro conflito potencial entre os paradigmas do passado e do presente, pouco compreendido e tantas vezes ignorado, em projetos CDM. Ora, se em nome de uma operação mais eficiente, e ecologicamente responsável, voos serão mantidos em terra, no aguardo de disponibilidade do espaço aéreo, como continuar a medir a “pontualidade” de uma empresa aérea, pelo horário do fechamento de portas de seus voos? Em outras palavras, as esperas que sejam necessárias, em terra, ocorrerão com as aeronaves ocupando o gate, com a porta fechada e os passageiros embarcados? Ou seria razoável alterar-se a forma de medir pontualidade?

Eis uma questão complexa e polêmica (historicamente ignorada), que envolve a própria experiência de voo dos passageiros. Afinal, qual horário é efetivamente relevante, para um passageiro que interrompe suas atividades (trabalho ou laser), na origem e as retoma no destino?

Se compreendermos o fato de que, independentemente da motivação de seu voo, o passageiro só poderá retomar suas atividades, quando desembarcar no destino – o voo nada mais é do que um hiato em sua disponibilidade. O horário de fechamento de porta da aeronave, na origem, torna-se pouco relevante e sua hora de desembarque no destino é o que realmente fará diferença em sua vida.

Este é o real objetivo da introdução do CDM no transporte aéreo – o ideal de assegurar operações ininterruptas, cujas demoras inevitáveis, sejam previstas com antecipação, proporcionando dois benefícios fundamentais à experiência de voo do passageiro:

– operação ágil, da origem ao destino

– previsibilidade de seu horário de desembarque no destino

Uma vez compreendido este primeiro momento de introdução do conceito CDM no transporte aéreo, podemos agora saltar no tempo, até o momento em que o referido Ground Delay Program e as restrições impostas às horas de decolagem daqueles voos que potencialmente excederiam a capacidade do espaço aéreo, resultaram em um efeito colateral na gestão das aeronaves em superfície.

Ora, se a cada dia, restrições diferentes podiam ser impostas a cada voo, as companhias aéreas perdiam a prerrogativa de iniciar cada operação, tão logo seus processos estivessem concluídos – o chamado “first called, first served”. Era como se o “antibiótico” – Ground Delay Program, extremamente eficiente no combate à “infecção original” – o congestionamento do espaço aéreo, atacasse agora “o fígado” – a regularidade das operações das companhias aéreas, em superfície.

E foi neste contexto que, nas regiões de maior volume de tráfego, onde o Ground Delay Program atingia, de forma mais drástica, as operações das companhias aéreas em superfície, nascia então a ideia de alterar-se a forma de interação entre o Controle de Tráfego Aéreo e as Companhias Aéreas, para a formação da sequência de decolagem nos aeroportos.

Em síntese, a introdução do CDM nos aeroportos correspondeu, na realidade, à integração do ambiente aeroportuário aos esforços pela busca das operações ininterruptas – gate to gate, iniciada com o advento do Ground Delay Program.

É importante ressaltar-se que os dois entes diretamente envolvidos nesta integração são o Controle de Tráfego Aéreo e as Companhias Aéreas. O novo protocolo de interação entre estes dois entes – o chamado “Best planned, Best served” baseava-se em duas premissas intrinsecamente relacionadas:

  • As companhias aéreas deveriam agora estimar, previamente e com máxima precisão, o horário em que cada voo estaria 100% apto para iniciar-se, com todos os seus processos concluídos. O chamado Target Off-Block Time (TOBT).
  • O controle de Tráfego Aéreo, considerando todas as variáveis necessárias a assegurar a operação ininterrupta – gate to gate, deveria alocar, para cada voo, uma janela de tempo de 10 minutos, tão próxima de seu TOBT quanto possível, como intervalo de tempo permitido para que o piloto solicitasse acionamento de motores e saída do gate. Nascia então o conceito do TSAT (Target Star-up Approval Time) e de sua janela de tolerância (-5/+ 5 minutos)

Talvez seja este o momento de propor ao leitor uma reflexão: se a integração do ambiente aeroportuário ao modelo CDM de operação corresponde, na realidade, à uma mudança no protocolo de interação entre Controle de Tráfego Aéreo e as Companhias Aéreas, seria realmente o operador aeroportuário, o protagonista natural deste processo? A esta altura, parece questionável esta premissa, não é verdade ?

IMPORTANTE:

É essencial compreender que a introdução do conceito CDM no transporte aéreo, desde o Ground Delay Program até sua expansão ao ambiente aeroportuário (TOBT / TSAT), representam, na realidade, uma redução de flexibilidade aplicada às Companhias Aéreas, para a solicitação de início de operação de cada voo, em nome de um melhor aproveitamento global dos recursos do aeroporto e da busca da operação ininterrupta preconizada pelo CDM.

Assim sendo, a adoção do CDM em ambiente aeroportuário, deve ser fruto de um cuidadoso estudo do impacto operacional e econômico, por parte das companhias aéreas, sob o risco de incorrer-se em dois riscos concretos e relevantes:

  • Ministrar-se uma medicação “para o fígado” – regularidade da operação das companhias aéreas em superfície, sem que haja sido ministrado “o antibiótico” para a infecção original -congestionamento o espaço aéreo. Não se combate a infecção com a medicação para o fígado! Corre-se o risco de planejar uma sequência de decolagens, não validada pelos gestores do espaço aéreo, pois os voos continuarão a sofrer descontinuidade em voo.
  • Ministrar-se uma medicação desproporcional à magnitude da enfermidade. Ressalte-se que o volume das operações na América Latina corresponde a uma fração daquele verificado em regiões como Estados Unidos e Europa. Corre-se, portanto, o risco de reduzir-se, desnecessariamente, a flexibilidade das companhias aéreas, principalmente fora dos horários de maior movimento.

Infelizmente, o que se constata é que em nossa região, o CDM em ambiente aeroportuário, vem sendo contemplado como uma panaceia, importada de outras regiões, que vem curar todos os males do transporte aéreo – muitos dos quais sequer sofremos.

E o mais grave é que aqueles que deveriam, supostamente, ser os grandes beneficiários do milagre CDM – as Companhias Aérea, são justamente as maiores vítimas potenciais de projetos importados, prematuros e desprovidos do necessário período de gestação, que caracterizou sua introdução, nas regiões mais desenvolvidas.

A crescente retomada da atividade aérea pós covid, oferece a oportunidade ideal para separar-se mitos de verdades, na implantação CDM em ambiente aeroportuário. O passado oferece importantes lições, que devem ser contempladas à luz do ambiente operacional, econômico e cultural onde registraram-se as primeiras iniciativas. O futuro nos reserva desafios, que merecem ser enfrentados sob a ótica do cenário regional, nos seus mais variados aspectos.

Confira o artigo em inglês: CDM- Collaborative Decision Making

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Portal AirConnected

Sergio Martins

Sergio Martins

Engenheiro, formado pela UFRJ, com Pós Graduação em Administração, Marketing, Comunicações e Comércio Exterior. Diretor de Serviços de Tráfego Aéreo da Saab e membro do Grupo de Trabalho ATFM/A-CDM da CANSO. Iniciou sua atividade professional como Controlador de Tráfego Aéreo, em 1983, no Controle de Aproximação do Rio de Janeiro. Ainda na área técnica, trabalhou como Despachante Operacional de Voo e Engenheiro de Operações na VARIG. Passou à indústria em 1993, trabalhando na mais conceituadas empresas multinacionais do setor. Acumula mais de 30 anos de experiência em distintas áreas operacionais e comerciais do transporte aéreo internacional.
1 Comentou
webmaster
ADMINISTRATOR
PROFILE

Posts Carousel

Deixe uma mensagem

Your email address will not be published. Required fields are marked with *

1 Comentou

  • Andre
    09/03/2023, 19:18

    Parabéns pelo artigo. Bons argumentos.

    REPLY

Últimas Notícias

Mais Comentadas

Vídeos em Destaque

Assine nossa Newsletter

Signa-nos em nossas Redes Sociais