Tomada de Decisão Colaborativa, em Transporte Aéreo
Há cerca de dez anos, o assunto vem consolidando-se como trend topic, nas áreas de gestão de tráfego aéreo e operação aeroportuária. E como é comum a todo trend topic, fala-se bem mais do que se efetivamente compreende.
Um dos principais obstáculos à perfeita compreensão do que representa a introdução do conceito de Tomada de Decisão Colaborativa (CDM), no transporte aéreo, é fruto de uma separação histórica entre os universos aeronáutico e aeroportuário.
Tradicionalmente, grandes competências foram desenvolvidas, no âmbito aeronáutico (serviços de tráfego aéreo) e no âmbito aeroportuário (processos relacionados a embarque e desembarque de passageiros e cargas). A introdução do CDM no transporte aéreo, nasceu justamente da necessidade de unir estes dois universos, de forma a otimizar o transporte aéreo como um todo, buscando uma operação eficiente de ponta a ponta – ou seja de gate to gate.
Retrocedamos alguns anos no tempo, quando dos primeiros eventos de congestionamento do espaço aéreo, à medida que crescia o tráfego. Em algum momento no tempo – e este momento não foi o mesmo nas diferentes regiões, tornou-se claro que muitos voos decolavam rumo a congestionamentos, esperas e desvios em rota, o que tornava as operações mais longas, mais caras e ecologicamente mais nocivas – consumo desnecessário de combustível e aumento da emissão de CO2.
Os slots estratégicos, definidos por temporada, já não resistiam à operação real, onde eventos meteorológicos, atrasos, falhas mecânicas, etc., produziam inevitáveis congestionamentos. A única alternativa possível era assegurar que cada voo só tivesse início, quando a disponibilidade do espaço aéreo permitisse uma operação ininterrupta – gate to gate. E assim foi feito, com o advento do Ground Delay Program que, como o nome induz, assegura que as esperas necessárias, para equilibrar capacidade e demanda, ocorram com as aeronaves em terra, e turbinas desligadas.
Aí reside o primeiro conflito potencial entre os paradigmas do passado e do presente, pouco compreendido e tantas vezes ignorado, em projetos CDM. Ora, se em nome de uma operação mais eficiente, e ecologicamente responsável, voos serão mantidos em terra, no aguardo de disponibilidade do espaço aéreo, como continuar a medir a “pontualidade” de uma empresa aérea, pelo horário do fechamento de portas de seus voos? Em outras palavras, as esperas que sejam necessárias, em terra, ocorrerão com as aeronaves ocupando o gate, com a porta fechada e os passageiros embarcados? Ou seria razoável alterar-se a forma de medir pontualidade?
Eis uma questão complexa e polêmica (historicamente ignorada), que envolve a própria experiência de voo dos passageiros. Afinal, qual horário é efetivamente relevante, para um passageiro que interrompe suas atividades (trabalho ou laser), na origem e as retoma no destino?
Se compreendermos o fato de que, independentemente da motivação de seu voo, o passageiro só poderá retomar suas atividades, quando desembarcar no destino – o voo nada mais é do que um hiato em sua disponibilidade. O horário de fechamento de porta da aeronave, na origem, torna-se pouco relevante e sua hora de desembarque no destino é o que realmente fará diferença em sua vida.
Este é o real objetivo da introdução do CDM no transporte aéreo – o ideal de assegurar operações ininterruptas, cujas demoras inevitáveis, sejam previstas com antecipação, proporcionando dois benefícios fundamentais à experiência de voo do passageiro:
– operação ágil, da origem ao destino
– previsibilidade de seu horário de desembarque no destino
Uma vez compreendido este primeiro momento de introdução do conceito CDM no transporte aéreo, podemos agora saltar no tempo, até o momento em que o referido Ground Delay Program e as restrições impostas às horas de decolagem daqueles voos que potencialmente excederiam a capacidade do espaço aéreo, resultaram em um efeito colateral na gestão das aeronaves em superfície.
Ora, se a cada dia, restrições diferentes podiam ser impostas a cada voo, as companhias aéreas perdiam a prerrogativa de iniciar cada operação, tão logo seus processos estivessem concluídos – o chamado “first called, first served”. Era como se o “antibiótico” – Ground Delay Program, extremamente eficiente no combate à “infecção original” – o congestionamento do espaço aéreo, atacasse agora “o fígado” – a regularidade das operações das companhias aéreas, em superfície.
E foi neste contexto que, nas regiões de maior volume de tráfego, onde o Ground Delay Program atingia, de forma mais drástica, as operações das companhias aéreas em superfície, nascia então a ideia de alterar-se a forma de interação entre o Controle de Tráfego Aéreo e as Companhias Aéreas, para a formação da sequência de decolagem nos aeroportos.
Em síntese, a introdução do CDM nos aeroportos correspondeu, na realidade, à integração do ambiente aeroportuário aos esforços pela busca das operações ininterruptas – gate to gate, iniciada com o advento do Ground Delay Program.
É importante ressaltar-se que os dois entes diretamente envolvidos nesta integração são o Controle de Tráfego Aéreo e as Companhias Aéreas. O novo protocolo de interação entre estes dois entes – o chamado “Best planned, Best served” baseava-se em duas premissas intrinsecamente relacionadas:
- As companhias aéreas deveriam agora estimar, previamente e com máxima precisão, o horário em que cada voo estaria 100% apto para iniciar-se, com todos os seus processos concluídos. O chamado Target Off-Block Time (TOBT).
- O controle de Tráfego Aéreo, considerando todas as variáveis necessárias a assegurar a operação ininterrupta – gate to gate, deveria alocar, para cada voo, uma janela de tempo de 10 minutos, tão próxima de seu TOBT quanto possível, como intervalo de tempo permitido para que o piloto solicitasse acionamento de motores e saída do gate. Nascia então o conceito do TSAT (Target Star-up Approval Time) e de sua janela de tolerância (-5/+ 5 minutos)
Talvez seja este o momento de propor ao leitor uma reflexão: se a integração do ambiente aeroportuário ao modelo CDM de operação corresponde, na realidade, à uma mudança no protocolo de interação entre Controle de Tráfego Aéreo e as Companhias Aéreas, seria realmente o operador aeroportuário, o protagonista natural deste processo? A esta altura, parece questionável esta premissa, não é verdade ?
IMPORTANTE:
É essencial compreender que a introdução do conceito CDM no transporte aéreo, desde o Ground Delay Program até sua expansão ao ambiente aeroportuário (TOBT / TSAT), representam, na realidade, uma redução de flexibilidade aplicada às Companhias Aéreas, para a solicitação de início de operação de cada voo, em nome de um melhor aproveitamento global dos recursos do aeroporto e da busca da operação ininterrupta preconizada pelo CDM.
Assim sendo, a adoção do CDM em ambiente aeroportuário, deve ser fruto de um cuidadoso estudo do impacto operacional e econômico, por parte das companhias aéreas, sob o risco de incorrer-se em dois riscos concretos e relevantes:
- Ministrar-se uma medicação “para o fígado” – regularidade da operação das companhias aéreas em superfície, sem que haja sido ministrado “o antibiótico” para a infecção original -congestionamento o espaço aéreo. Não se combate a infecção com a medicação para o fígado! Corre-se o risco de planejar uma sequência de decolagens, não validada pelos gestores do espaço aéreo, pois os voos continuarão a sofrer descontinuidade em voo.
- Ministrar-se uma medicação desproporcional à magnitude da enfermidade. Ressalte-se que o volume das operações na América Latina corresponde a uma fração daquele verificado em regiões como Estados Unidos e Europa. Corre-se, portanto, o risco de reduzir-se, desnecessariamente, a flexibilidade das companhias aéreas, principalmente fora dos horários de maior movimento.
Infelizmente, o que se constata é que em nossa região, o CDM em ambiente aeroportuário, vem sendo contemplado como uma panaceia, importada de outras regiões, que vem curar todos os males do transporte aéreo – muitos dos quais sequer sofremos.
E o mais grave é que aqueles que deveriam, supostamente, ser os grandes beneficiários do milagre CDM – as Companhias Aérea, são justamente as maiores vítimas potenciais de projetos importados, prematuros e desprovidos do necessário período de gestação, que caracterizou sua introdução, nas regiões mais desenvolvidas.
A crescente retomada da atividade aérea pós covid, oferece a oportunidade ideal para separar-se mitos de verdades, na implantação CDM em ambiente aeroportuário. O passado oferece importantes lições, que devem ser contempladas à luz do ambiente operacional, econômico e cultural onde registraram-se as primeiras iniciativas. O futuro nos reserva desafios, que merecem ser enfrentados sob a ótica do cenário regional, nos seus mais variados aspectos.
Confira o artigo em inglês: CDM- Collaborative Decision Making
1 Comentou
Andre
09/03/2023, 19:18Parabéns pelo artigo. Bons argumentos.
REPLY